quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A culpa é de Deus?


Sabe como são as conversas de elevador, não é?!

— Calor, né?!
— Nossa, nem me fale... Será que chove?
— Hmmm, acho que já está ameaçando chuva... opa, meu andar! Até logo.

Já reparou como invariavelmente todos os usuários de elevador se convertem em especialistas em meteorologia?! Pois, outro dia, antes de iniciar uma reunião na qual eu estava participando “meio que de gaiato”, alguém saiu com uma dessas típicas conversas de elevador (pra matar o tempo enquanto não se tem nada de relevante para falar!). Mas dessa vez não estávamos no elevador e o assunto era um pouco mais profundo: o terremoto do Haiti. Naquela semana um novo tremor de terra havia acontecido e, ao entrar na sala de reuniões uma das três pessoas presentes disse:

— Vocês viram? Mais um tremor de terra no Haiti. É nessas horas que eu me pergunto: será que Deus realmente existe?

Uau!! Isso é mais empolgante do que conversar sobre a precipitação pluviométrica da cidade de São Paulo! Veja que interessante. Por trás da pergunta há uma suspeita: se Deus existisse mesmo, ele não permitiria que tal tragédia se abatesse sobre um país já tão ferrado quanto o Haiti, afinal, eles já têm tantos problemas. Por que será que Deus não fez nada para impedir tal destruição?! Bom, encontrei uma boa resposta. E não foi nem na Bíblia, nem em nenhum livro religioso.

A Folha de São Paulo do dia 24 de janeiro trouxe duas matérias bastante relevantes relacionadas a esse tema. Uma delas (página A17) traz as avaliações de cinco acadêmicos e intelectuais haitianos sobre a situação, passada e atual, do Haiti. São dois historiadores, dois sociólogos e um antropólogo. Em primeiro lugar, afirmam que tal catástrofe já havia sido prevista por vários cientistas que propuseram medidas simples e exeqüíveis para preparar a população. Mas estas nunca foram tomadas. Desde coisas simples como ensinar as crianças a se posicionar debaixo de um batente de porta ao perceberem um tremor, até as mais complexas como construções resistentes a tremores nunca foram realizadas. Bilhões de dólares foram gastos nos últimos 15 anos sem gerar resultados significativos. A ONU gasta US$ 600 milhões por ano com o país e tal soma é engolida pela inércia, corrupção e incompetência. Tal catástrofe só veio completar a destruição generalizada iniciada no país há 50 anos pela incompetência das autoridades locais, dizem os cinco lúcidos acadêmicos haitianos.

Nesta mesma edição do jornal, a geóloga americana Lisa Grant, especialista em terremotos, é entrevistada (página A 19). Ela diz sentir-se bastante triste com a tragédia que se abateu sobre o Haiti, mas não surpresa. Segundo Lisa, não dá pra saber quando um terremoto vai acontecer, mas é possível saber com boa precisão onde eles acontecerão e qual a sua probabilidade. O problema é que esses dados são ignorados pelas pessoas, inclusive por certas autoridades. O Haiti tinha os dados, mas estes não foram bem utilizados. As pessoas preferem não pensar a respeito porque acham que se não pensarem, não vai acontecer, explica a doutora Grant. Se os principais edifícios do Haiti, como hospitais e o palácio presidencial, tivessem sido construídos com base nas normas de segurança, essas edificações não teriam sucumbido ao terremoto. Afirma ainda que em 1992 houve um terremoto similar ao do Haiti na Califórnia e ninguém morreu porque as construções eram seguras.

Realmente Deus tem de ter costas largas! Afinal, ele é todo poderoso e poderia ter impedido tanta morte e destruição, não poderia? Bem, acho que o problema não é dar uma resposta a esta pergunta mas, sim, ter a coragem de fazer a pergunta certa: Por que é que nós não fazemos aquilo que devemos fazer a fim de evitar que o inevitável cause mais danos do que o necessário?

É engraçado como o ser humano sempre tenta achar um culpado que esteja fora e longe de si próprio, a quem ele identifica como estando contra si mesmo. Assim, Deus deve ser o culpado, especialmente para aqueles que têm alguma desconfiança da suposta bondade divina quando confrontada com a miséria humana. Por isso, se Deus é bom, por que há doenças? Por que há fome da África? Por que há mortes no Haiti? E assim, parte da humanidade transfere sua responsabilidade para as costas eternamente largas de Deus, eximindo seus pares (os humanos) de qualquer responsabilidade.

Mas, e o que dizer dos cristãos?! Há entre estes, muitos que jamais culpariam a Deus, porque crêem em sua bondade. Mas comumente têm a mesma atitude dos que culpam a Deus, só que transferindo toda a culpa ao Diabo. “Ah, isso é coisa do Diabo!”. Assim, tudo de ruim que acontece em suas vidas tem uma origem diabólica em alguma instância, de modo que estes são meras vítimas da semi-infinita maldade que tenta roubar-lhes a tranqüilidade, eximindo-se também, de qualquer responsabilidade, participação, desatenção ou até, desconsiderando o fato de que viver representa a soma de alegrias e perigos que envolvem, igualmente, todas as pessoas.

Talvez não houvesse nada que eu, ou você que lê este artigo, pudéssemos fazer para evitar a destruição de Porto Príncipe. Mas as atitudes diante do terremoto ocorrido em Porto Príncipe, nesse sentido, são apenas um exemplo da maneira como interpretamos nossa participação nos eventos da vida: eternas vítimas de um deus inoperante ou de um diabo persistente. Ambos fazendo de nós marionetes em suas mãos imprevisíveis e esmagadoras. Quanta infantilidade para adultos crescidos!

Dessa forma, de um lado temos um grupo que culpa a Deus pelos infortúnios da raça humana e outro grupo que culpa o Diabo por tudo aquilo que não deveria acontecer. Alguns preferem culpar Deus ao invés de analisar fatos e perceber que a corrupção, ganância e injustiça humanas produzem muito mais mortes e maldade do que estamos dispostos a reconhecer. Ou ainda, outros preferem simplificar e infantilizar a vida, eximindo os homens de toda a sua responsabilidade pelo mal no mundo transferindo-o sempre à personificação deste mal chamada de Diabo. E enquanto crentes e descrentes procuram um culpado sobrenatural para os problemas da ilha caribenha (bem como de sua insegura existência), cinco acadêmicos haitianos e uma cientista americana parecem ter uma explicação bem mais plausível para isso: a passividade humana associada à corrupção e à injustiça.

E apesar do nosso amigo lá da conversa de elevador em plena reunião querer colocar a culpa do terremoto em Deus, os próprios acadêmicos haitianos concluem a matéria dizendo que se a boa vontade de seus amigos da Republica Dominicana, do Brasil e do México falhar, eles ainda esperam contar com a ajuda de Deus!

7 comentários:

  1. Lendo seu texto pensei que de algumas maneiras Deus está naquele terremoto. Uma delas é soterrado por perguntas irreponsáveis, que parecem fazer eco àquela da cruz: se és Deus, porque...De outra modo parece que Deus é visto em Porto Príncipe por aqueles que sofrem, como outro eco: nós estamos sofrendo pq não agimos correto, mas ele...Marcos Nicolini

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  2. Pois é Wanderley, tem até uma corrente aí atribuindo à culpa à "maldição hereditária" isso porque os Haitianos são negros e grande parte da nação faz uso de práticas da magia e do "vudu". Penso que seria melhor mesmo que parássemos de fazer essas conjecturas absurdas e começássemos a pensar no próximo como pensamos em nós mesmos.

    Gloecir Bianco

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  3. Muito bom, Wander, gostei demais.

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  4. Gosto de ler teus textos.
    Simples,claros,reflexivos.
    Tens o dom,tens Fé,e sensibilidade.
    E assim,continue a ser instrumento vivo,nas mãos de Quem realmente, faz a vida valer!
    Regina Marcondes.

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  5. Wanderleyyyyy, pra variar arrasou no texto...escreva mais..muito mais...sempre estarei por aqui pra ler!!Sempre me desafia a refletir.beijo.Flavia.

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  6. Bom texto, nos leva a um momento de reflexão sobre algumas coisas que ocorrem no dia a dia.

    Abraços

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  7. Carissimo!!!
    Brilhante..parabens!!!
    Continue escrevendo.
    Wil

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